Sem fé, sem lei, sem rei…

O primeiro contato que Lévi-Strauss fez com os Bororo (Lévi-Strauss 1957:224) o fez lembrar do enunciado que escolhemos como título desta postagem. Ele diz:

Atracámos, tentámos conversar: só conhecem uma palavra de português: fumo, que pronunciam sumo.‘

Portanto, os índios aparentemente não incluem o som f em seu sistema fonético. Como o próprio antropólogo afirma, esta observação ja fora feita por antigos missionários, mais especificamente por Pero de Magalhães Gândavo em seu Tratado da terra do Brasil que data do ano 1573. Segundo ele, os índios eram sem fé, sem lei, nem rei, já que lhes faltaram os três fonemas f, r e l.

Um Bororo fotografado por Claude Lévi-Strauss.

Ora, esta observação feita tanto por um missionário como por um antropólogo nos é apresentada, a nos os leitores, sem mais nada: nenhuma explicação por parte dos autores, nem sequer um indício de que eles mesmos teriam se perguntado pelo motivo desse fato linguístico.

No entanto, há nem 2 anos um grupo de linguistas da Universidade de Zurique apresentaram num artigo os resultados de uma pesquisa fascinante (Blasi et al. 2019). Investigando os diferenetes sistemas fonéticos da humanidade, estes pesquisadores partiram da noção de que a ocorrência ou não de um dado fonema depende de quão fácil seria de ser pronunciado. Em consequência, qualquer mudança fisiológica do aparato humano de produção de fala, por exemplo da maxila, influiria na produção de sons, segundo eles.

Paleoanthropological evidence suggests that the production apparatus has undergone a fundamental change of just this kind since the Neolithic. Although humans generally start out with vertical and horizontal overlap in their bite configuration (overbite and overjet, respectively), masticatory exertion in the Paleolithic gave rise to an edge-to-edge bite after adolescence. Preservation of overbite and overjet began to persist long into adulthood only with the softer diets that started to become prevalent in the wake of agriculture and intensified food processing. We hypothesize that this post-Neolithic decline of edge-to-edge bite enabled the innovation and spread of a new class of speech sounds that is now present in nearly half of the world’s languages: labiodentals, produced by positioning the lower lip against the upper teeth, such as in “f” or “v.”

A saber, as descobertas do grupo revelam que a transição de sociedades caçadores-coletores pré-históricas a sociedades mais sedentárias que se dedicam à agricultura teve um impacto no aparato da fala humana. Em vista, pois, das culturas indígenas do Brasil terem sido principalmente forrageadoras, fato que começou mudar só com a chegada dos europeus, essa observação feita por Lévi-Strauss adquire um peso muito mais significativo. Pois, essa mudança cultural ressoa ainda no título duma obra que ele escreverá mais afrente: o cru e o cozido.

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