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A palavra e a cura: contar e escrever para que o céu não caia

Janelas: ao escrever essas linhas de conclusão de um seminário mais focado na leitura de A queda do céu, Bruce Albert retuita uma informação sobre a morte do segundo yanomami por coronavirus. O primeiro tinha sido um adolescente. O segundo, Flacido Yanomami tinha 68 anos e morreu em uma “região com 2051 indígenas, segundo o Censo da Sesai de 2019”. Ao longo do curso, estamos lidando com uma série de referências a textos literários, ensaios históricos e críticos, filmes, desenhos, fotografias e o presente não cessa de interferir de modo que nossa realidade mudou completamente. E fomos partilhando esta situação juntos, de modo que forma e conteúdo foram se mesclando enquanto íamos nos separando. Das aulas presenciais na sala D-31, do Romanisches Seminar, às quintas-feiras, às nossas telas e zonas privadas, fomos nos espalhando e nos confinando, cada um no seu espaço e seguimos de algum modo em uma perspectiva do comum, dividindo leituras, discutindo textos e buscando um sentido para o que estamos estudando: “Amazônia: imaginários da selva na literatura e nas artes.” Curso no qual A queda do céu é uma lente de leitura, pois através da sensibilidade inaugurada por esse livro, estabelecemos contatos com outros textos e imagens.
Bruno Latour: A relação é distinta daquela mencionada por Bruno Latour que em Nous n’avons jamais été modernes (1991), inicia com o termo “crise”. Latour folheia um jornal e comenta a diversidade de assuntos que escapam na grande parte das vezes do nosso conhecimento: medidas para a Antártica, especialistas em química da parte superior da atmosfera, grandes chefes e administradores da Atochem e Monsanto, são alguns dos assuntos na primeira página do livro. Como se posicionar no mundo diante de tais crises? Como se posicionar diante da floresta que queima na sua extensão territorial, nas páginas de jornal e que arde na nossa imaginação? Essas questões multiplicam desafios de leitura, aliás, exigem que nossa leitura seja política. Política não no sentido restrito e partidário no sentido que o termo transfere às instituições e poderes de decisão, mas no sentido das nossas escolhas do que lemos, das vozes às quais damos atenção à escuta. A humanidade vive uma crise que tem uma história da própria invenção constante que é a fabricação da vida coletiva. O que Bruno Latour chamou de fabricação das nossas coletividades, que é um modo de perceber como os cidadãos foram absorvidos no século XVIII, os operários no século XIX e atualmente o lugar dos não-humanos nas nossas vidas: sensibilidades vegetais e animais, ao lado de sensibilidades técnicas e científicas (p. 185-186). Nesse sentido, a hipótese que atravessou o curso, a saber, se A queda do céu pode inscrever-se como um marco para uma literatura pós-etnográfica se sustenta fragilmente na sensibilidade que o olhar etnográfico inseriu no mundo moderno: talvez por em dúvida a modernidade – isto é, o sentimento de aceleração do tempo, a separação entre vencedores e vencidos e a existência daqueles encerrados nos seus passados arcaicos e estáveis – seja uma das tarefas políticas para delimitarmos os limites do humano que lia o seu jornal tranquilamente e fazia o percurso casa-trabalho ao longo dos anos, dividindo dias úteis e fins de semana, férias e uma vida cercada por narrativas de consumação tão marcadas pela mitologia moderna (ver Roland Barthes e suas mitologias).
Fotografia: Miguel Rio Branco

Podcast 13 – Paixão pela mercadoria

Se a literatura é a arte da incerteza e da dúvida, ela precisa encontrar meios eficazes para que essa capacidade permaneça produzindo esses efeitos com tanta precisão. Vamos subir o tom da afirmação sobre a importância de ler A queda do céu em um seminário e encadear os elementos estudados até agora. A proposta situar A queda do céu como um “acontecimento literário” nos permite uma aproximação oblíqua com as distintas disciplinas, a saber, a fotografia, a antropologia, os estudos culturais, a etnografia, os estudos ambientais, as artes visuais, a filosofia, a sociologia e a própria literatura, pois esta, se é interdisciplinar e indisciplinar por princípio, não admite que nenhuma maneira de sentir fique fora do seu horizonte. Assim, o acontecimento ao qual me refiro em A queda do céu é o de uma sensibilidade que aflora em relação ao mundo no plano mais geral – estando aí a universidade do livro – e, na dimensão específica, a radicalização daquilo que os antropólogos descobriram no século passado: a consciência infeliz do viajante e do colonizador como vimos a partir do que Silviano Santiago escreveu em 1989. Distinto dos textos de etnografias nos quais se explicam cientificamente o comportamento de povos autóctones, suas crenças e seus costumes, Bruce Albert não escreveu sozinho este livro, mas trouxe uma voz, se aliou a ela para contar outro mundo. Se estou agora a defender a dimensão literária de A queda do céu é porque este relato assumiu a forma livro e, desse modo, ele ocupa espaços tanto nas estantes das bibliotecas quanto nas nossas imaginações. Sob a forma de uma “pele das palavras”, ele chega pouco a pouco no nosso imaginário para dizer uma mensagem simples de outro modo, escapando até mesmo de clichês ecológicos, gastos, para afirmar que nós indígenas e não-indígenas não estamos sozinhos no universo. Queria ressaltar o efeito xamânico do texto. Uma textualidade xamânica que pode ser desdobrada no plano literário que compreende a relação que temos com as próprias imagens espirituais do mundo. Talvez esse sentido seja melhor compreendido pelos artistas e escritores do que pelos teóricos e estudiosos, mas talvez seja necessário buscar a lógica xamânica da leitura de A queda do céu. Há uma cosmopolítica que nos aproxima de modos de existência variados, a respeitar antepassados, imagens espirituais, o ambiente no qual estamos e os grupos sociais. Nesse sentido, o livro também causa um estranhamento na “naturalização da economia” que o mundo ocidental – e digo mundo ocidental no sentido que é este que não apenas conhecemos de perto, como estamos no ventre dele – tornou prático para nos assegurar as regras de nossas vidas para além do próprio plano econômico, recuperando a dimensão afetiva e emocional. A queda do céu nos situa “diante da dor dos outros”, para nos valer da expressão de Susan Sontag. A expressão dessa dor incide afetivamente nos objetos como podemos ler no capítulo 19 do livro, “Paixão pela mercadoria”. A paixão pela mercadoria relata o esquecimento da beleza da floresta e a fixação do pensamento nos objetos fabricados. Eis que ganhamos a expressão “o povo da mercadoria”: “somos mesmo o povo da mercadoria!”, dizem Kopenawa e Albert (2015, p. 407).

Podcast 12 – Albert von Brunn lê trecho de A queda do céu

Quando eu era criança, os brancos subiram os rios e começaram a fazer morrer nossos antigos em grande número. Depois voltaram, de avião e de he-licóptero. Então suas fumaças de epidemia, mais uma vez, fizeram morrer mui-tos de nós. Agora, eles tinham resolvido abrir uma de suas estradas até o meio de nossa floresta, e suas doenças iriam com certeza devorar os que tinham so-brevivido. Eu ficava pensando em tudo isso, quando estava sozinho no posto da Funai. Isso me atormentava eme entristecia. Dizia a mim mesmo: « Os brancos rasgam a terra da floresta. Derrubam as árvores e explodem as colinas. Afugen-tam a caça. Será que agora vamos todos morrer das fumaças de epidemia de suas máquinas e bombas? ». Eu já sabia que essa estrada só iria nos trazer coisas ruins. Ninguém nos tinha avisado antes de as obras começarem. Chico só tinha dito umas poucas palavras a respeito para a gente de Werihi sihipi u, quando abrimos o posto de Mapulaú. Eu tinha tentado alertá-los contra as doenças que iriam, mais uma vez, se espalhar pela nossa floresta. Porém, pouco depois eu iria em-bora para Manaus, devido à minha briga com Chico. No caminho, vi apenas o desmatamento do traçado da estrada, que tinha começado. Havia por toda parte pequenos grupos de brancos com roupas rasgadas trabalhando com machados. As máquinas grandes ainda não tinham chegado.
As palavras a respeito da estrada que eu conseguia compreender naquele tempo me assustavam também por uma outra razão além das doenças. Eu tinha ouvido gente da Funai contar que, para abrir o trecho que liga Manaus a Boa Vista, os soldados tinham atirado nos Waimiri-Atroari e jogado bomba~ em sua floresta. 46 Eles eram guerreiros valorosos. Não queriam que a estrada atravessas-se suas terras. Atacaram os .postos da Funai para que os brancos não entrassem onde eles viviam. Foi isso que deixou os militares enfurecidos. Ouvindo essa história, comecei a temer que os soldados resolvessem nos tratar do mesmo jeito! Porém, por sorte, isso nunca aconteceu. Muitos foram, porém, as mulhe-res, crianças e velhos que morreram entre nós por causa da estrada, Não foram mortos pelos soldados é verdade. Mas foram as fumaças de epidemia trazidas pelos operários que os devoraram. E, mais uma vez, ver morrer os meus daque~ le modo me revoltou. As coisas só faziam se repetir, desde a minha infância; Então, a dor da morte dos meus, outrora, em Toototobi, voltou. A raiva do luto invadiu novamente o meu pensamento: « Esse caminho dos brancos é muito ruim! Os. seres da epidemia xawatari vêm seguindo por ele, atrás das máquinas e dos caminhões. Será que sua fome de carne humana vai nos matar a todos, um depois do outro? Terão aberto a estrada para silenciar a floresta de nossa presença? Para aqui construir suas casas, sobre os rastros das nossas? Serão eles realmente seres maléficos, já que continuam nos maltratando assim?’:
Nossos antigos não tinham essas preocupações, porque não sabiam de nada quanto à estrada. Os homens do governo não os reuniram para ouvir a voz deles. Não perguntaram a eles: « Podemos abrir esse caminho nas suas terras? O que acham? Vocês não vão ficar com medo? ». Os poucos brancos que tinham falado do seu traçado não explicaram quase nada. Nem o pessoal da Funai nem o de Teosi os tinham preparado para o que estava por vir. A mim, que falo a língua dos brancos, tinham mandado trabalhar bem longe, em Iauaretê. De modo que, certo dia, as máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido. Então, nossos grandes homens, mantidos na ignorância, não se mostraram hostis com os brancos da estrada. Nem os do rio Ajarani, nem os do Catrimani, do Mapulaú ou do Aracá disseram nada. Pensaram que, acontecesse o que acontecesse, a floresta nunca iria desaparecer e continuariam vivendo nela como sempre tinham feito. Pensaram também que poderiam conseguir muito alimento e mercadorias dos brancos. Sabiam que o pessoal da estrada jogava essas coisas de seus aviões e distribuía tudo genero-samente.50 Ignoravam completamente as verdadeiras intenções dos brancos. E eu, no Mapulaú, era jovem demais para convencê-los da ameaça que pairava sobre eles. Então, desci o rio para Manaus sozinho, guardando no peito minha preocupação e minha tristeza.

Albert, Bruce / Kopenawa, Davi (2010): A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, pp. 305-307.

PODCAST 10 – O céu e a floresta por Andersen Wu

Quando, às vezes, o peito do céu emite ruídos ameaçadores, mulheres e crianças gemem e choram de medo. Não é sem motivo! Todos tememos ser esmagados pela queda do céu, como nossos ancestrais no primeiro tempo. Lembro-me ainda de uma vez em que isso quase aconteceu conosco. Eu era jovem na época. Estávamos acampados na floresta, perto de um braço do rio Mapulaú. Tínhamos saído, com alguns homens mais velhos, à procura de uma moça do rio Uxi u que tinha sido levada por um visitante de uma casa das terras altas, a montante do rio Toototobl. Anoitecia. Não havia nenhum ruído de trovão, nenhum raio no céu. Tudo estava em silêncio. Não chovia, e não se sentia nenhum sopro de vento. No entanto, de repente, ouvimos vários estalos no peito do céu. Foram se sucedendo, cada vez mais violentos, e pareciam bem próximos. Era mesmo muito assustador!
Aos poucos, todos se puseram a gritar e soluçar de pavor no acampamento: “Aë! O céu está despencando! Vamos todos morrer! Aë”. Eu também tinha medo. Ainda não havia me tornado xamã, e perguntava a mim mesmo, muito inquieto: “O que vai acontecer conosco? Será que o céu vai mesmo cair em cima de nós?: Vamos todos ser arremessados para o mundo subterrâneo?”. Naquela época, ainda havia grandes xamãs entre nós, pois muitos de nossos maiores ainda estavam vivos. Então, vários deles começaram a trabalhar juntos para segurar a abóbada celeste. No tempo antigo, seus pais e avós haviam ensinado esse trabalho a eles, que por isso foram capazes de impedir mais essa queda. Assim, depois de algum tempo tudo se acalmou. Mas estou certo de que, uma vez mais, o céu tinha mesmo ameaçado se quebrar acima de nós. Sei que isso já ocorreu, muito longe da nossa floresta, lá onde a abóbada celeste se aproxima das bordas da terra. Os habitantes dessas regiões distantes foram exterminados, porque não souberam segurar o céu. Mas aqui onde vivemos ele é muito alto e mais sólido. Acho que é porque moramos no centro da vastidão da terra. Um dia, porém, daqui a muito tempo, talvez acabe mesmo despencando em cima de nós. Mas enquanto houver xamãs vivos para segurá-lo, isso não vai acontecer. Ele vai só balançar e estalar muito, mas não vai quebrar. É o meu pensamento. (Albert, B./ Kopenawa, D., 2015: 194)

Albert, Bruce / Kopenawa, Davi (2015): A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés, 1ª ed., São

PODCAST 9 – A Amazônia das mil e uma noites

A Amazônia como um território real, imaginário ou híbrido possui uma base utópica no sentido de ser uma invenção que data de quatro séculos e na abertura que o imaginário proporciona em termos de uma orientalização da Amazônia, o que a deixaria duplamente exótica se consideramos uma Amazônia oriental. O argumento se divide em duas partes: a primeira é que a Amazônia é uma invenção que permite uma fabulação híbrida e ramificada. A segunda é que existe uma dimensão oriental que estabelece uma espécie de afinidade com As mil e uma noites. Nessa dimensão histórico-ficcional as noites da floresta são infinitas e não pertencem aos homens que, como podem, se apropriam dessa escuridão pela imaginação e reproduzem as mais diversas histórias. Esses argumentos têm como ponto de partida o livro de Simone de Souza Lima: Amazônia Babel. Línguas, ficção, margens, nomadismos e resíduos utópicos (2014). O estudo mostra que a Amazônia é uma invenção que data do século XVI e que encontra uma cristalização no século XX com três narrativas: A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls, de 1925; Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1928, e Terra de Icamiada, de Abguar Bastos, de 1930. Conforme afirma Simone de Souza Lima, muito embora exista referência ao Relato de Viagem do Frei Gaspar de Carvajal, em viagem pela região entre fevereiro de 1541 a setembro de 1542, a expressão Amazônia, no estudo de Francisco Bento da Silva – com referência à ampla região que hoje dá chão e acolhe vários estados brasileiros é tardia. (p. 25), segundo a autora. Convêm ressaltar que os estudos de Alberto Rangel e Euclides da Cunha também contribuíram para a denominação do espaço amazônico, que foi constituído a partir de um olhar exterior, como afirma a autora: “Não obstante à contribuição do discurso fundador de Carvajal, o termo Amazônia foi sendo forjado com maior força ideológica apenas no final do século 19 e início do século 20, ao que nos parece a partir da contribuição de escritores como Inglês de Sousa, Euclides da Cunha, Alberto Rangel, Peregrino Júnior, José Veríssimo, dentre outros.” (Souza Lima, 2014, p. 25).

PODCAST 8 – Desenhos da escrita. Leitura de A queda do céu por Laura Falletta

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte. O mesmo ocorre com as palavras dos espíritos xapiri, que também são muito antigas. Mas voltam a ser novas sempre que eles vêm de novo dançar para um jovem xamã, e assim tem sido há muito tempo, sem fim. Nossos xamãs mais antigos nos dizem: « Agora é sua vez de responder ao chamado dos espíritos. Se pararem de fazê-lo, ficarão ignorantes. Perderão seu pensamento e por mais que tentem chamar a imagem de Teosi para arrancar seus filhos dos seres maléficos,
não conseguirão ».
As palavras de Omama e as dos xapiri são as que prefiro. Essas são minhas de verdade. Nunca irei rejeitá-las. O pensamento dos brancos é outro. Sua memória é engenhosa, mas está enredada em palavras esfumaçadas e obscuras. O caminho de sua mente costuma ser tortuoso e espinhoso. Eles não conhecem de fato as coisas da floresta. Só contemplam sem descanso as peles de papel em que desenharam suas próprias palavras. Se não seguirem seu traçado, seu pensamento
perde o rumo. Enche-se de esquecimento. e eles ficam muito ignorantes,seus dizeres são diferentes dos nossos. Nossos antepassados não possuíam peles de imagens e nelas não inscreveram leis. Suas únicas palavras eram as que pronunciavam suas bocas e eles não as desenhavam, de modo que elas jamais se distanciavam deles. Por isso os brancos as desconhecem desde sempre.
Eu não aprendi a pensar as coisas da floresta fixando os olhos em peles de papel. Vi-as de verdade, bebendo o sopro de vida de meus antigos com o pó de yãkoana que me deram. Foi desse modo que me transmitiram também o sopro dos espíritos que agora multiplicam minhas palavras e estendem meu pensamento em todas as direções. Não sou um ancião e ainda sei pouco. Entretanto, para que minhas palavras sejam ouvidas longe da floresta, fiz com que fossem desenhadas na língua dos brancos.
Talvez assim eles afinal as entendam, e depois deles seus filhos, e mais tarde ainda, os filhos de seus filhos. Desse modo,suas ideias a nosso respeito deixarão de ser tão sombrias e distorcidas e talvez até percam a vontade de nos destruir. Se isso ocorrer, os nossos não mais
morrerão em silêncio, ignorados por todos, como jabutis escondidos no chão da floresta.

Desenhos da Escrita, p. 75-76

PODCAST 7 – Uma ciência nova

Uma ciência nova: alianças de e com pensadores indígenas e práticas do mundo contemporâneo.

A aliança entre saberes institucionais e não-institucionais (conhecidos também por “saberes populares”). Novas mediações com o mundo para a redefinição de categorias até então fixas, “natureza” e “cultura”. Hipóteses sobre discursos para além da natureza e cultura (Philippe Descola) e pensadores indígenas tais como Ailton Krenak, Álvaro Tukano, Biraci Yawanawá, Eliane Potiguara, etc. A proposta deste podcast consiste na leitura do texto da lei (capítulo VIII da Constituição Federal: Dos Índios) e um fragmento da entrevista de Ailton Krenak:

Quando você consegue ocupar esse lugar simbólico, da representação, você se potencializa para ocupar o lugar de fato, reivindicar o território, dizer: “isso aqui não é terra do branco, do fazendeiro, do banco, é terra dos meus ancestrais, dos meus antepassados. Eu vou viver aqui, quero viver aqui, ela tem significado para mim. Essa montanha é sagrada, ela tem um humor, ela fala; eu desperto pela manhã e vejo o semblante da montanha e sei se ela está feliz, irritada, bem, descansada, repousando. A montanha fala comigo, porque eu me reconheço nesse lugar. A hora que me tiram daqui e me jogam em qualquer canto eu não ouço mais a voz da montanha, e não escuto mais em que linguagem o rio está falando. Se eu não entendo a linguagem do rio, ela vira um esgoto para mim. Se a montanha não fala comigo, eu posso pegá-la e jogá-la em cima de um trem e manda-la para um depósito de minério qualquer”. Porque você despersonaliza a paisagem, tira o sentido, esvazia o sentido, esvazia o significado desta cosmovisão, dá um chute no castelo, e isso despenca. Se você não tem um imaginário, se você não ocupa um imaginário, se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, pelo ambiente da visão, a visão da cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, que não tem sentido nenhum. Você foi jogado em qualquer lugar.

Sergio Cohn, Idjahure Kadiwéu. Tembetá. Conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro, Azougue, 2019, p. 29-30

PODCAST 6 – Vozes da floresta fora da floresta: Josely Vianna Baptista, Sérgio Medeiros, André Vallias

Nada está fora do lugar. A frase parece nos remeter a um dos fragmentos de “Uma ciência do concreto”, de Claude Lévi-Strauss, onde ele afirmou que a ciência lida com dúvida e o fracasso, mas não com a desordem. Tudo tem está no seu devido lugar. O termo “fora”, no entanto, adquire um valor súbito que está no título “vozes da floresta fora da floresta”. Admite-se geograficamente a existência de um espaço exterior à floresta amazônica. Mas, tais vozes, por mais que sejam não-indígenas (Napë), estariam totalmente fora da floresta, ainda que esta floresta esteja muito mais circunscrita aos símbolos como insinuou um poeta? Nada está fora do lugar é o título de uma plaquete de Josely Vianna Baptista, editada pelo selo Demônio Negro, em São Paulo, em 2017.
“Você acha que caiu do céu e que eu saí de dentro da terra…” (p. 16). Essa é uma citação de O fim de tarde de uma alma com fome (2015), de Sérgio Medeiros (Mato Grosso, 1959). Trata-se de um poema dramático que tem por subtítulo “variações sobre um ou dois temas indígenas”. O livro apresenta três versões do diálogo de um jovem soldado com uma “alma” que pode ser um espírito, uma mulher ou uma anta. Os vocábulos alma e anta possuem não apenas uma afinidade lexical, mas abrem a dimensão semântica para a percepção xamânica. Isto é, de trânsito e participação entre mundos. Nunca está claro se o soldado ou se ambos estão mortos ou vivos.
O poema de André Vallias (São Paulo, 1963), Totem (2014), se inscreve nesta cartografia das vozes da floresta sobretudo pela dimensão gráfica-visual que revela um aspecto gramático-sensorial, nos quais os índios são índices sonoros. Nomes como Munduruku, Xavantes, Kaiowá, Yanomami, Marubo, enfim, nomes que fazem parte de um Brasil escondido e emudecido, o silêncio dos vencidos e a harmonia do mundo. Mas para citar Eduardo Viveiros de Castro que escreveu o prefácio: Os índios não são “nossos índios”. Eles não são “nossos”. Eles são nós. Nós somos eles. Todos nós somos todos eles. Somos outros, como todos.” Ou, em outro trecho da apresentação: nomes de povos, palavras estranhas, gramáticas misteriosas, sons inauditos, sílabas pedregosas mas também ditongos doces, palavras que escondem gentes e línguas de que sequer suspeitávamos os nomes. Nomes que mal sabemos, nomes que nunca ouvimos, mas vamos descobrindo. » É esse sentimento de descoberta que gostaria de deixar com esta leitura dos três autores.