Se a literatura é a arte da incerteza e da dúvida, ela precisa encontrar meios eficazes para que essa capacidade permaneça produzindo esses efeitos com tanta precisão. Vamos subir o tom da afirmação sobre a importância de ler A queda do céu em um seminário e encadear os elementos estudados até agora. A proposta situar A queda do céu como um “acontecimento literário” nos permite uma aproximação oblíqua com as distintas disciplinas, a saber, a fotografia, a antropologia, os estudos culturais, a etnografia, os estudos ambientais, as artes visuais, a filosofia, a sociologia e a própria literatura, pois esta, se é interdisciplinar e indisciplinar por princípio, não admite que nenhuma maneira de sentir fique fora do seu horizonte. Assim, o acontecimento ao qual me refiro em A queda do céu é o de uma sensibilidade que aflora em relação ao mundo no plano mais geral – estando aí a universidade do livro – e, na dimensão específica, a radicalização daquilo que os antropólogos descobriram no século passado: a consciência infeliz do viajante e do colonizador como vimos a partir do que Silviano Santiago escreveu em 1989. Distinto dos textos de etnografias nos quais se explicam cientificamente o comportamento de povos autóctones, suas crenças e seus costumes, Bruce Albert não escreveu sozinho este livro, mas trouxe uma voz, se aliou a ela para contar outro mundo. Se estou agora a defender a dimensão literária de A queda do céu é porque este relato assumiu a forma livro e, desse modo, ele ocupa espaços tanto nas estantes das bibliotecas quanto nas nossas imaginações. Sob a forma de uma “pele das palavras”, ele chega pouco a pouco no nosso imaginário para dizer uma mensagem simples de outro modo, escapando até mesmo de clichês ecológicos, gastos, para afirmar que nós indígenas e não-indígenas não estamos sozinhos no universo. Queria ressaltar o efeito xamânico do texto. Uma textualidade xamânica que pode ser desdobrada no plano literário que compreende a relação que temos com as próprias imagens espirituais do mundo. Talvez esse sentido seja melhor compreendido pelos artistas e escritores do que pelos teóricos e estudiosos, mas talvez seja necessário buscar a lógica xamânica da leitura de A queda do céu. Há uma cosmopolítica que nos aproxima de modos de existência variados, a respeitar antepassados, imagens espirituais, o ambiente no qual estamos e os grupos sociais. Nesse sentido, o livro também causa um estranhamento na “naturalização da economia” que o mundo ocidental – e digo mundo ocidental no sentido que é este que não apenas conhecemos de perto, como estamos no ventre dele – tornou prático para nos assegurar as regras de nossas vidas para além do próprio plano econômico, recuperando a dimensão afetiva e emocional. A queda do céu nos situa “diante da dor dos outros”, para nos valer da expressão de Susan Sontag. A expressão dessa dor incide afetivamente nos objetos como podemos ler no capítulo 19 do livro, “Paixão pela mercadoria”. A paixão pela mercadoria relata o esquecimento da beleza da floresta e a fixação do pensamento nos objetos fabricados. Eis que ganhamos a expressão “o povo da mercadoria”: “somos mesmo o povo da mercadoria!”, dizem Kopenawa e Albert (2015, p. 407).