Quando eu era criança, os brancos subiram os rios e começaram a fazer morrer nossos antigos em grande número. Depois voltaram, de avião e de he-licóptero. Então suas fumaças de epidemia, mais uma vez, fizeram morrer mui-tos de nós. Agora, eles tinham resolvido abrir uma de suas estradas até o meio de nossa floresta, e suas doenças iriam com certeza devorar os que tinham so-brevivido. Eu ficava pensando em tudo isso, quando estava sozinho no posto da Funai. Isso me atormentava eme entristecia. Dizia a mim mesmo: « Os brancos rasgam a terra da floresta. Derrubam as árvores e explodem as colinas. Afugen-tam a caça. Será que agora vamos todos morrer das fumaças de epidemia de suas máquinas e bombas? ». Eu já sabia que essa estrada só iria nos trazer coisas ruins. Ninguém nos tinha avisado antes de as obras começarem. Chico só tinha dito umas poucas palavras a respeito para a gente de Werihi sihipi u, quando abrimos o posto de Mapulaú. Eu tinha tentado alertá-los contra as doenças que iriam, mais uma vez, se espalhar pela nossa floresta. Porém, pouco depois eu iria em-bora para Manaus, devido à minha briga com Chico. No caminho, vi apenas o desmatamento do traçado da estrada, que tinha começado. Havia por toda parte pequenos grupos de brancos com roupas rasgadas trabalhando com machados. As máquinas grandes ainda não tinham chegado.
As palavras a respeito da estrada que eu conseguia compreender naquele tempo me assustavam também por uma outra razão além das doenças. Eu tinha ouvido gente da Funai contar que, para abrir o trecho que liga Manaus a Boa Vista, os soldados tinham atirado nos Waimiri-Atroari e jogado bomba~ em sua floresta. 46 Eles eram guerreiros valorosos. Não queriam que a estrada atravessas-se suas terras. Atacaram os .postos da Funai para que os brancos não entrassem onde eles viviam. Foi isso que deixou os militares enfurecidos. Ouvindo essa história, comecei a temer que os soldados resolvessem nos tratar do mesmo jeito! Porém, por sorte, isso nunca aconteceu. Muitos foram, porém, as mulhe-res, crianças e velhos que morreram entre nós por causa da estrada, Não foram mortos pelos soldados é verdade. Mas foram as fumaças de epidemia trazidas pelos operários que os devoraram. E, mais uma vez, ver morrer os meus daque~ le modo me revoltou. As coisas só faziam se repetir, desde a minha infância; Então, a dor da morte dos meus, outrora, em Toototobi, voltou. A raiva do luto invadiu novamente o meu pensamento: « Esse caminho dos brancos é muito ruim! Os. seres da epidemia xawatari vêm seguindo por ele, atrás das máquinas e dos caminhões. Será que sua fome de carne humana vai nos matar a todos, um depois do outro? Terão aberto a estrada para silenciar a floresta de nossa presença? Para aqui construir suas casas, sobre os rastros das nossas? Serão eles realmente seres maléficos, já que continuam nos maltratando assim?’:
Nossos antigos não tinham essas preocupações, porque não sabiam de nada quanto à estrada. Os homens do governo não os reuniram para ouvir a voz deles. Não perguntaram a eles: « Podemos abrir esse caminho nas suas terras? O que acham? Vocês não vão ficar com medo? ». Os poucos brancos que tinham falado do seu traçado não explicaram quase nada. Nem o pessoal da Funai nem o de Teosi os tinham preparado para o que estava por vir. A mim, que falo a língua dos brancos, tinham mandado trabalhar bem longe, em Iauaretê. De modo que, certo dia, as máquinas chegaram à floresta sem que nenhuma palavra as tivesse precedido. Então, nossos grandes homens, mantidos na ignorância, não se mostraram hostis com os brancos da estrada. Nem os do rio Ajarani, nem os do Catrimani, do Mapulaú ou do Aracá disseram nada. Pensaram que, acontecesse o que acontecesse, a floresta nunca iria desaparecer e continuariam vivendo nela como sempre tinham feito. Pensaram também que poderiam conseguir muito alimento e mercadorias dos brancos. Sabiam que o pessoal da estrada jogava essas coisas de seus aviões e distribuía tudo genero-samente.50 Ignoravam completamente as verdadeiras intenções dos brancos. E eu, no Mapulaú, era jovem demais para convencê-los da ameaça que pairava sobre eles. Então, desci o rio para Manaus sozinho, guardando no peito minha preocupação e minha tristeza.
Albert, Bruce / Kopenawa, Davi (2010): A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami, trad. Beatriz Perrone-Moisés, 1ª ed., São Paulo: Companhia das Letras, pp. 305-307.
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