Em 1908 é publicada a primeira edição de Inferno verde – Cenas e cenários do Amazonas.[1] Depois de percorrer as mitologias e textos escritos à maneira do mito, é preciso recuperar, por outro viés, esse espaço distante da história – entendida na perspectiva de uma concepção diacrônica e sequencial de fatos – e mais próxima da geografia: o que em geral seria uma distinção entre tempo e espaço. No entanto, o que há em Inferno Verde é um entrecruzamento entre história e geografia, entre camadas de tempo e de espaço. Bertrand Westphal, autor de A geocrítica (La Géocritique – Réel, Fiction, Espace), escreveu que “o espaço – e o mundo que nele se desdobra – é fruto de um simbolismo, de especulação, que é também um vislumbre cintilante do [que está] além e, ousamos dizê-lo, de um mundo imaginário”[2]Textos históricos sobre a Amazônia aos quais pertence Inferno verde desvelam mundos imaginários a partir de um forte contato com a realidade da floresta tropical.
[1] A estrutura da obra é relativamente moderna: são 11 narrativas que podem ser 11 contos ou 11 capítulos de um romance. O que merece ser ressaltado nessa obra é sobretudo a técnica da descrição, a caracterização de personagens simples, de acontecimentos banais e isolados no tempo, mas profundamente abertos e que ainda sobrevivem às estruturas subdesenvolvidas do presente como será discutido posteriormente a partir do filme Amazônia, uma transa amazônica.
[2] “L’espace – et le monde qui se déploie em lui – sont le fruit d’une symbolique, d’une spéculation, qui est aussi miroitement de l’au-délà, et, osons le mot, d’un imaginaire”. Bertrand Westphal, La Géocritique – Réel, Fiction, Espace. Paris, Les Éditions de Minuit, 2007, p. 10.
https://soundcloud.com/eduardo-jorge-393472897/podcast-01-inferno-verdewav/s-49mjJ
Hatoum, Milton. «Uma carta de Bancroft» in: A cidade ilhada: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 23-28.
O ponto de partida é uma carta inédita de Euclides da Cunha que o narrador teria encontrado na Bancroft Library em Berkeley. A carta é evidentemente fictícia:
“É assim, resmungando contra o clima do equador, que começa a carta de Euclides a seu amigo Alberto Rangel. Rangel que estava no Rio de Janeiro, oferecera a Euclides sua casa espaçosa na praça Chile […]. Mas há algo mais nessa missiva além dos reclamos contra o calor de Manaus. A linguagem de Euclides – barroca, sinuosa, exuberante – está presente do início ao fim, O algo mais é o sonho que ele conta a Rangel: o sonho e uma cena que ele presenciou na tarde de 14 de fevereiro de 1905.
Choveu torrencialmente na manhã desse dia. Às onze horas, sozinho, Euclides almoçou. Depois, sentado na austríaca, releu um trecho de um livro de viagem de um naturalista britânico, talvez Henry Bates, pois na carta Euclides refere-se à obra do “grande Bates”. O mormaço o fez adormecer com o livro aberto entre as mãos. Euclides sonhou que a Amazônia, essa “quase infinita planície desértica”, já não era uma Terra Ignota. Europeus de boa estirpe a tinham povoado: áreas imensas de floresta estavam sendo devastadas e urbanizadas: a Amazônia, em suma, seria uma extensão de Manaus e Belém, cidades cosmopolitas. Essas visões se apagaram e surgiu no sonho a voz de um homem e em seguida o próprio homem: um francês de nome Gobineau. O francês tenta convencer Euclides de que as terras incultas da América só são viáveis com a colonização europeia. Euclides tenta dizer algo, hesita, enxuga o suor que lhe escorre da testa […] Irrita-se com a ideia extravagante de Gobineau e, falando um francês com um sotaque afetado, expulsa o intruso da sala com gestos autoritários, como um militar se dirige a um subalterno”.
Albert von Brunn
Gómez-Barris, Macarena: “A Fish-Eye Episteme: Seeing Below the River’s Colonization”, in: The extractive Zone. Social Ecologies and Decolonial Perspectives. Durham and London: Duke University Press, 2017, pp. 91-109.
Eduardo Viveiros de Castro, whose perspectivist insights have come out of a thirty-year ethnographic engagement, helps me to define such a point of view. His work both parallels and departs from subaltern genealogies and other Global South epistemes. Moving beyond the object-subject divide, Viveiros de Castro’s work increasingly poses a decolonizing challenge to Western anthropology, and to the reproduction of the human as a singular entity standing within a world of subordinate beings. Through ethnographic critique, Viveiros de Castro offers Indigenous thought as a philosophical challenge to the classic European distinction between Nature and Culture. Inverting the signifiers of “multiculturalism”, which has been the center of colonial/modern thought, to “multinaturalism”, Viveiros de Castro references how Indigenous peoples acknowledge the coexistence of multiple perspectives in the human and nonhuman world. The fundamental conceptual shift of perspectivist theory, then, is to reorder the nature-culture divides of primordial immanence: reversing the order of universalism to follow that of nature, and particularity ot that of culture.
Indigenous thought, as Viveiros de Castro shows us, has long been engaged with apprehending “reality from distinct points of view”, and ontologically has organized its societies and spiritual practices accordingly. A constantly shifting imagination of the Other is not constrained or delimited through the privileging of Homo sapiens. For my purposes, Viveiros de Castro’s work not only moves us into the realm of decolonial possibility, it also pursues and elaborates a rescripting of European thought. More importantly, it proposes that agency exists within a multiplicity of vantage points that are irreducible. As Viveiros de Castro puts it about Indigenous perspectivism, “We must remember, above all, that if there is a virtually Amerindian notion, it is that of an original state of undifferentiation or ‘undifference’ (don’t mistake this for ‘indifference’ or ‘sameness’ between humans and animals). This state of undifferentiation does not propose a unifying viewpoint but instead shows how the act of viewing can itself contain an agency that is not uniquely human. Furthermore, by conceptually naming multinaturalism, perspectivisms locate agency within the realm of the animate as well as the inanimate. Thus, in opposition to the gaze that is merely about ocular extensions of centralized power, perspectivist thought escapes the view of dominant visuality to encompass the modes of seeing that emerge outside of the range of the human eye and its capture.