Conversas em Zurique

um blogue sobre a língua portuguesa e as culturas lusófonas

entrevista com marília mendes

Entrevistámos Marília Mendes, professora de português, ex-leitora na Universidade de Zurique e fundadora da organização «S.E.S.J.- Starke Eltern, Starke Jugend»:

  • Como descreveria a sua experiência como portuguesa na Suíça?

Eu não definiria a minha experiência da Suíça enquanto portuguesa. Tenho uma experiência como pessoa migrante, pelo facto de não ter crescido no país. Eu diria que me movo com grande à vontade em diversos meios na Suíça de língua alemã, conheço os códigos necessários que me facilitam essa mobilidade – é a isto que se costuma chamar integração. Sei, por exemplo, que no comboio devo perguntar se o lugar está livre; que se alguém me diz qual é o seu nome próprio, me está a comunicar que nos podemos tratar por “tu”, etc. Mas mais do que isso: conheço bem a realidade política, histórica e cultural do país, acompanho as discussões públicas e tenho uma participação cívica ativa: intervenho em discussões políticas (fazendo um trabalho em defesa dos direitos dos e das migrantes) e faço algum trabalho voluntário. No entanto, não falo o dialeto, embora domine muito bem o alemão clássico. E isso marca-me sempre como estrangeira. Por isso, os meus interlocutores nativos suíços têm algumas reservas face à minha compreensão do dialeto e do alemão em geral, reservando-me sempre um lugar à margem. Há, aparentemente, uma barreira linguística entre o alemão clássico e o dialeto. Vivi as reações mais negativas por ser estrangeira pouco depois de ter chegado à Suíça. Curiosamente não por ser portuguesa, mas por as pessoas pensarem que eu era alemã: o meu sotaque germânico nem sempre agradava. De resto, nunca me senti abertamente discriminada ou desfavorecida por ser portuguesa. Reconheço, no entanto, que existe um discurso público na Suíça alemã ambivalente em relação aos portugueses: os “bons e aplicados trabalhadores” que não aprendem a língua e não se integram; o cliché global de que as nossas capacidades se limitam à execução de trabalhos manuais… Claro, há muitos membros da comunidade portuguesa que não falam alemão, mas os motivos por que o não fazem não aparece neste discurso. Isso tem consequências negativas sobretudo para a segunda geração, que se confronta amiúde com discriminações na escola.  

  • Na sua opinião, o que se pode fazer para difundir a língua e a cultura portuguesa na Suíça?

Penso que os estudos em língua portuguesa nas universidades suíças e as Cátedras, como a Cátedra Carlos de Oliveira [da Universidade de Zurique], desempenham um papel crucial. As aulas, os colóquios ou outros eventos que realizam são importantes janelas para a língua e a cultura. Mas também os cursos de língua e cultura portuguesas criam importantes pontes e uma base para essa difusão. Depois, claro, há atividades em outros ambientes culturais: concertos, exposições… E todos nós temos um papel a desempenhar, valorizando e respeitando a cultura e a língua, apoiando e divulgando o que se faz na área da cultura. Importante é que isso seja sempre feito sem arrogância e com abertura para outras culturas. Porque as culturas estão em constante diálogo e umas não são melhores do que outras. Aquilo de que gostaria muito seria ver jovens portugueses, da primeira ou da segunda geração, a desenvolver atividades culturais próprias, que necessariamente seriam uma fusão de vivências, para um melhor e interessante diálogo entre as culturas, que me parece ainda existir pouco na comunidade portuguesa.

  • O que faz para manter uma relação com Portugal e a cultura portuguesa?

Sobretudo leio muito: assino jornais e revistas online, porque quero e preciso manter-me informada. Faço, também, muitas pesquisas online relativamente a assuntos importantes para o meu trabalho. Leio ficção e ouço música como fontes inspiradoras de acesso às dinâmicas da cultura, porque a cultura não é estática. Devo confessar, no entanto, que em termos musicais estou algo desatualizada e precisaria de estar mais bem informada. Sempre que possível vejo cinema, mas vivendo na Suíça essas oportunidades são poucas. Depois tenho também, claro, os contactos pessoais e profissionais que cultivo e que são a forma mais forte e importante de manter os laços, bem como a melhor fonte para conhecer o que “move” as pessoas em Portugal. 

  • Que elemento da cultura lusófona considera que os suíços têm de conhecer (texto, canção, prato, monumento, cidade, acessório, tradição)?

Não sei se os suíços têm de conhecer algo. De certeza que não faz falta o conhecimento superficial: podem conhecer o pastel de nata, o bacalhau, etc., mas será que isso significa que conhecem a cultura portuguesa? Claro, não faz mal terem esse conhecimento, desde que isso não implique preconceitos e ideias pré-concebidas inabaláveis. Mas um autêntico conhecimento cultural deve ir mais longe, deve implicar uma ligação afetiva e uma perspetiva do interior da cultura. É isso o que a literatura, o cinema, a arte, a música nos podem dar. Ler um romance possibilita uma vivência virtual muito mais profunda de uma cultura do que uma experiência gastronómica. E dá tanto ou mais prazer. É, por isso, sobretudo importante possibilitar oportunidades para a criação desses laços e afetos. Todo o tipo de acontecimentos culturais podem ser bons momentos para isso.     

  • Quais são os objetivos da “S.E.S.J. Starke Eltern – Starke Jugend”?

“S.E.S.J. Starke Eltern – Starke Jugend” é uma associação de Zurique que dá apoio e informações a pais de jovens que se encontram entre a escola e a vida profissional. Sou cofundadora e presidente da associação. Criámo-la porque tínhamos a consciência de que pais estrangeiros muitas vezes não conhecem o funcionamento do sistema escolar na Suíça e isso implica falta de instrumentos para apoiar devidamente os filhos. A passagem da escola para a formação profissional ou para a vida laboral é um momento importante na vida de um jovem. Quando surgem problemas nessa altura da vida, muitas famílias sentem-me desorientadas, não conhecem as possibilidades que o sistema oferece e não sabem a quem solicitar apoio. É aí que entra a associação S.E.S.J. Dando informação em geral e apoio individual aos pais, indica-lhe caminhos para que eles possam acompanhar os filhos antes e durante a formação profissional ou no período de orientação profissional. Desta forma, a associação contribui para que a passagem dos jovens para a vida profissional seja bem-sucedida. As informações e o apoio são gratuitos e, se necessário, na língua primeira dos pais.

  • O que distingue a comunidade portuguesa das outras comunidades estrangeiras?

Uma pergunta difícil. Ela implica que as diversas comunidades são homogéneas e que cada uma tem características culturais distintas. Não concordo muito com este tipo de discurso identitário. Este parte de generalizações frequentemente baseadas em preconceitos e perpetuadoras de ideias feitas que podem ser armas desfavoráveis, como o que refiro acima sobre um determinado tipo de discurso suíço que considera os portugueses resistentes à integração. Um preconceito indiferenciado prejudicial à comunidade, também porque ignora os condicionalismos da vida das pessoas. As comunidades são heterogéneas e penso que, se existem características comuns a um determinado grupo, estas são transversais e têm mais a ver com o grupo sociológico e laboral a que as pessoas pertencem do que ao facto de terem uma determinada origem. Contudo, pode haver determinados fatores dominantes numa comunidade: haverá mais portugueses em setores laborais de salários baixos e de trabalhos menos qualificados do que entre a comunidade alemã, por exemplo, e isso dá um determinado perfil à comunidade, influenciando o olhar exterior sobre ela. Mas não são fatores intrínsecos do facto de se ser português na Suíça. A identidade, também de uma comunidade, é sempre complexa e múltipla, por isso difícil (ou impossível?) de delimitar.

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