Alegria que vem – cinco instantâneos
E com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separação mas é grito de felicidade diabólica. Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio – já estudei matemática que é a loucura do raciocínio – quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o próximo instante é o desconhecido. O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.
Clarice Lispector, Água Viva, 1973.
Ir e voltar: alegria e mesa de montagem
Vou e volto ao começo do romance de Clarice Lispector, Água Viva, de 1973, sem deixar de pensar que este parágrafo é um exemplo para pensarmos a literatura e os estudos literários nos dias de hoje – no momento em que estamos vivos –, pois a literatura é fulgurante, viva, e sendo feita junto com a respiração. Ela permanece em toda a transição do verbo estar. Em toda a impermanência que este estado suscita: a leitura é uma condição de passagem. Na condição de leitor, empresto a minha respiração à Lispector e, pelo texto, ela retorna um tipo de presença que intensifica o instante. A literatura com este começo se torna aberta à experiência silenciosa e à brevidade dos instantes. Isto é, os signos estão sensíveis, sendo que a própria matéria textual desperta esta sensibilidade. A literatura com Clarice Lispector possui estes tônus de alegria. E sob esses instantes – próximos à frase seguinte – a respiração do leitor situa-se em uma espera, que é breve: a da próxima frase. Ler Clarice Lispector é um exercício de entusiasmo. Com esta passagem vou e volto à alegria com a hipótese do montador de um filme que elabora algumas intensidades. Alegria que vem é uma forma de leitura deste fragmento pela montagem. Um destes exercícios é a conversa entre Maria Filomena Molder e Jean-Luc Nancy.
Alegria que vem
A alegria ilumina um sentido em vias de se fazer. Ela é uma forma de leitura que nos põe à prova, pois determinados sentidos em um texto, em um poema, aparecem brevemente nas relações de leitura que estabelecemos com eles, não durando que alguns instantes. No entanto, nosso corpo é capaz de fornecer a determinados textos, passagens, frases, histórias um tipo de arquivo. A partir de Clarice Lispector a alegria empresta um ou mais sentidos à leitura de textos literários. A alegria neste filme e nesta pesquisa apresenta uma dinâmica de conceito e de corpos na relação entre literatura e sociedade. Vida e teoria literária não estariam distantes, mas se tocariam por conexões instantâneas. O que há de mais imediato fica em contato com o tempo da contemplação – théorein – para fazer do espaço literário um lugar imediato para poéticas da experiência. Ler não se isola de encontros, de viagens, sendo parte de construções, desconstruções de sentido. O texto de Clarice Lispector abre o texto a uma relação com o desconhecido, bem próximo da matéria da poesia. É a própria resistência da poesia que apresenta uma dinâmica entre vida e teoria. Estar em plena existência, tal como o diz Maria Filomena Molder quando pronuncia Não te esqueças de viver, mas também quando ela lê poemas de Herberto Helder do livro A morte sem mestre (2014) e o aproxima – não pela lei dos gêneros em literatura – pelo impulso vital da alegria, isto é, pela sua brevidade. Jean-Luc Nancy também o faz com Paul Celan ao expor uma sintaxe diferente a qual as palavras se ajustam. Seriam por essas torsões e por esses clarões (éclats) que o sentido, em poesia, está por se fazer, como ele escreveu em Resistência da poesia Jean-Luc Nancy. Próxima da alegria, “a poesia não coincide consigo mesma: talvez seja essa não-coincidência, essa impropriedade substancial, aquilo que faz propriamente a poesia.” Isso implica que Alegria que vem é um campo aberto de leitura para a combinação múltipla da conversa entre os filósofos com obras literárias.
Agora e neste instante
O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração, escreveu Clarice Lispector. A alegria neste filme é muito mais um modo de leitura, mantendo viva e intensa a própria literatura do que fazer uma história de uma emoção a partir de uma pergunta essencialista: o que é a alegria? Mesmo se voltarmos sua intensidade para quando estamos alegres ainda não teríamos êxito em expor um discurso que coincida com a representação da alegria ou, em outro nível, da felicidade. Estamos expostos às reproduções da vida com pessoas sorrindo através do discurso publicitário e, se por um lado, existe uma espécie de imperativo categórico que regula a vida social, por outro, existe uma finalidade daqueles que diariamente emitem mensagens para que um tipo de produto seja consumido. Esse grau de representação nos deixa à deriva de uma consumação de si. De outro modo, existe uma dimensão da alegria que escapa a esse modo de apropriação dos indivíduos e que se presentifica, por exemplo, naquilo que ainda está “agora e neste instante” ainda não formulado, informe, e por isso, aberto. A alegria pode ser lida aqui como uma abertura ao próximo instante que é o desconhecido. Para retornar à Clarice Lispector: O próximo instante é feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respiração. A resistência da literatura, seu modo de permanecer oralmente e textualmente, consiste nesta respiração onde a letra e a voz se unem.
O filme, um ensaio
Alegria que vem buscou na materialidade medial do filme uma forma de manter uma respiração da palavra com o pensamento. O pensamento em ato, concretizado com certa hesitação ao buscar as palavras como levantar-se da cadeira em busca de um dicionário. Também com o cuidado com as formulações e com a forma de apresentar as imagens e conduzi-las em seus discursos – em uma fala que se faz em ação. O filme procura esse tipo de registro para expor uma possibilidade de interseção com o meio digital, onde se pode manter a palavra no registro oral. Ele busca ainda expor pequenos atos concretos como a breve descrição da cena de um filme, a leitura de um poema que ressoam aquilo que antecede a cena: um ato de hospitalidade para receber aqueles que gostariam de ouvi-los sobre a alegria. Assim, o discurso produzido no filme faz da alegria um motor, um ethos intelectual que envolve disposição, entusiasmo, partilha, elementos indispensáveis para um filme-ensaio.
Sobre a pesquisa
Alegria que vem é a primeira parte de um projeto de investigação que tem a literatura como ponto de partida para reflexões e análises de fatos de linguagem a partir do deslocamento de um afeto, a alegria, para a materialidade de obras artísticas e literárias. A presença de uma emoção como ponto de partida nos transporta para a experiência literária tanto em outros espaços geográficos quanto em outros campos de saber. A partir de uma intermedialidade, a experiência literária se formaliza através do ensaio – no sentido mais amplo do termo – onde filme, viagens, leituras, conversas estão reunidas em uma plataforma, possibilitando, assim, convergências para o ensino de humanidades no contexto digital. A primeira parte foi realizada com dois filósofos, Jean-Luc Nancy e Maria Filomena Molder. Uma conversa que passa por obras literárias (Clarice Lispector, Herberto Helder, Paul Celan, Georges Bataille, Maurice Blanchot) chegando a análise de Maria Filomena Molder: “O que Clarice Lispector gostaria de ser, integra-se nesta segunda forma de alegria: «uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.” A alegria, em literatura, passa pela construção do sentido em frases, parágrafos ou obras, pois a vida humana e animal está sempre em vias de ser formulada. Decorrente da primeira parte, a segunda parte da investigação intitula-se uma alegria animal e ela terá como participantes Muriel Pic e Jean-Christophe Bailly, ambos escritores. A intermedialidade terá por inicio uma breve incursão teórica da obra do zoólogo suíço Adolf Portmann, do historiador da arte e da cultura alemão Aby Warburg e o imaginário animal nas imagens do mundo continental através da memoria de seus zoológicos, museus e jardins. Entre a montagem e um arquivo animal que remonta as origens do cinema (Jules-Etienne Marey e Edward Muybridge), da Fotografia (William Fox Talbot e Georges Shiras), além do uso das imagens animais no desenvolvimento das imagens subaquáticas com Jean Painlevé e trechos de obras literárias que exprimem o movimento animal, a questão da alegria ressalta nossa relação com uma memória animal sempre em vias de se expandir e de persistir nas imagens, nas texturas e nas relações. Na segunda parte, uma alegria animal, pretendemos desenvolver a relação entre imagem e instante. A terceira parte da investigação intitula-se alegria pública, alegria política, cujo foco está nos laços comunitários que se formam a partir de lutas, atos de resistências a problemas sociais, e soluções temporárias e estéticas para afirmar a vida, seus modos e suas formulações em plena existência. Em alegria pública, alegria política, passaremos por conceitos e noções de biopoder (Michel Foucault), força de lei (Jacques Derrida), crítica da violência (Walter Benjamin), e formas e modos de vida (Giorgio Agamben). A nossa pergunta-guia para a terceira parte é: existiria uma fenomenologia da alegria no que concerne as formas de resistência espontâneas e laços comunitários instintivos? Discutiremos esses aspectos a partir de uma perspectiva com artistas mulheres de diversos países da América Latina (Julieta Hanono – Argentina; Viviana Mendez – Chile, Estefania Peñafiel – Equador, Lenora de Barros – Brasil) e com o filósofo Emanuel Alloa (Saint-Gallen).